Diversidade dos produtos reflete história de mais de três mil anos de tradição
Há vinhos cujo nome já soa tão familiar que a maioria dos enófilos já conhecem alguma coisa sobre ele, ou possuem suas opiniões: é o caso do Jerez, também denominado Xerez ou Sherry, o vinho fortificado da Andaluzia. Mas os conceitos que se tem sobre esse vinho podem ser ainda muito limitados, visto que se trata do resultado de um dos mais trabalhosos processos de produção de vinho do mundo.
A princípio, quando se fala de um vinho fortificado, ou mesmo do Jerez em específico, a maioria das pessoas torce o nariz por se tratar de um vinho "doce", intenso, por vezes de difícil harmonização. Mas o Jerez é muito mais que um vinho doce: suas categorias abrangem desde vinhos jovens, leves e delicados, até os maduros, escuros e complexos.
Com um total de 7 mil hectares que produzem, anualmente, por volta de 56 milhões de garrafas, a região andaluza de Jerez, que inclui as cidades de Jerez de la Frontera, Sanlúcar de Barrameda, El Puerto de Santa Maria e Cádiz, entre outras, exporta principalmente para Inglaterra, Holanda e Japão, sendo que este último tem apresentado um crescente interesse neste vinho, e o Brasil, com consumo próximo a 1100 caixas, não chega a sequer entrar nas estatísticas.
Aliás, o baixo consumo possui uma explicação: o Jerez concentrou por muitos anos as vendas ao Reino Unido, um conhecido consumidor de vinhos, mas desde meados de 1980 o consumo, que era ascendente, passou a cair até que em 2018 ele chegar a menos de um quarto do que era em 1984, conforme dados do Consejo Regulador del Vinos de Jerez. O que é uma pena para um vinho cuja tradição remonta a mais de 3 mil anos e iniciada por fenícios, com os romanos fazendo referência ao Vinum Ceretensis, ou o vinho feito em Ceret, local que acabou se tornando a atual Jerez.
Entre as iniciativas para popularizar o produto, uma das mais recentes é a Semana Anual do Jerez, que costuma acontecer em novembro, e que logicamente conta com o apoio tanto dos produtores quanto das associações que querem ver todas as variedades deste versátil vinho.
Na Bíblia do Vinho, obra de Karen McNeil, o Jerez é dividido em sete estilos que se aglutinam em duas categorias: finos e olorosos, sendo que Hugh Johnson e Jancis Robinson dão as suas detalhadas descrições no Atlas Mundial do Vinho, e baseado em tais obras, Vinho & Gastronomia apresenta as características principais desses estilos, para ilustrar as imensas variedades oferecidas por este vinho fortificado com aguardente vínica.
Nos finos, destacam-se os seguintes:
- os manzanillas, uma variedade do fino que leva esse nome em decorrência de seus aromas de flores semelhantes a camomila e que possuem um toque mineral levemente salgado;
- os finos, tidos como os mais refinados e complexos de Jerez, de cor pálida e baixo teor alcoólico;
- o amontillado, que é o fino que, posteriormente, perde a camada da flor e oxida em contato com o ar, adquirindo uma coloração mais escura que o fino, sendo que normalmente os melhores amontillados são finos que não tinham o vigor necessário para serem consumidos jovens; e
- o palo cortado, que é inicialmente feito como um amontillado, mas natural ou artificialmente acaba por perder a flor, adquirindo a característica de um oloroso.
Na categoria dos olorosos, temos os seguintes estilos:
- o oloroso propriamente dito, uma categoria na qual o vinho oxida por mais tempo que um fino ou um amontillado, é uma variedade mais escura, mas ainda é um vinho seco e ácido na sua versão clássica, bastante aromática;
- o cream, uma variedade obtida através da mistura de outros tipos, normalmente oloroso e Pedro Ximenez; e
- o Pedro Ximénez ou Jerez dulce, que é feito através da vinificação das uvas secas de mesmo nome ou de Moscatel, e adquire coloração bastante escura e um sabor extremamente doce, que o torna uma boa opção para usar como calda ou como vinho de sobremesa. Caso seja feito com ao menos 85% de uvas Moscatel de Alexandria (ou Petit Grains), ele recebe a denominação Moscatel, sem confundir com o similar português de Setúbal.
Tamanha diversidade não encontra paralelo nas variedades de uva utilizadas na sua produção, que são apenas três: a Palomino, responsável por 90% da produção local, a Moscatel e a Pedro Ximénez, todas variedades brancas, com a coloração do vinho advinda principalmente de sua oxidação e do contato prolongado com a madeira, além da evaporação da água no processo de elaboração.
Aliás, o método de fabricação do Jerez é único, e inclui uma rede de barris com muitos anos de uso com capacidade para 600 litros (chamados botas), empilhados em uma sequência, na qual são feitos diversos cortes entre diversos estágios de amadurecimento sem nunca esvaziar um barril - e, conforme se segue determinada sequência, é obtido um tipo de Jerez. A este processo se chama solera, e quanto maior o teor de açúcar, mais vezes ele é repetido.
É visível que o Jerez é um caso a ser estudado e degustado para compreender todas as suas vertentes, e, pensando nisso, a ABS promoveu uma degustação com jornalistas e especialistas para demonstrar tamanha versatilidade, cujas notas de degustação seguem:
Notas de degustação
La Guita Manzanilla !
Média de 4 anos de envelhecimento, fresco e refrescante, é ideal para acompanhar aperitivos e frutos do mar. Em taça, amarelo claro com reflexos esverdeados, muito límpido e transparente, chega a brilhar. No nariz, aromas florais (camomila), levemente cítricos e herbáceos, com um toque de manjericão, e minerais, que dão um toque salino, como uma brisa marinha. Em boca, a acidez demonstra seu potencial gastronômico, com muita mineralidade e o característico toque salino. O paladar apresenta toques de umami, e evolui em boca para apresentar as mesmas notas já percebidas nos aromas, com uma persistência bastante longa.
Tio Pepe Fino !!
O mais famoso dos Jerez finos, é produzido pela Bodega Gonzalez Byass ao redor da cidade de mesmo nome, e com menor influência do mar. Produzido no solo "Albariza", composto de carbonato de cálcio (giz), argila e silício com alto poder de retenção de umidade, o clima de seu terroir se caracteriza por invernos moderados e verões extremamente quentes. Em taça, é amarelo palha claro e límpido, com reflexos esverdeados. No nariz, apresenta aromas de flores e frutos secos (amêndoas tostadas), aromas herbáceos e frutas brancas, como maçãs, com toques minerais e outros aromas que remetem a resina. Em boca, tem por característica a acidez baixa e sabores que remetem a frutas brancas e cítricas no início, mas que evoluem com um toque de cremosidade, com uma persistência longa - a complexidade do vinho torna difícil a descrição da sua experiência gustativa.
El Maestro Sierra Fino
Trata-se de um Jerez fino mais robusto, com uma coloração que indica maior oxidação e madeira mais perceptível. Este vinho é produzido com bastante influência do Oceano Atlântico e também em solo Albariza, e por um dos mais antigos produtores de Jerez. Em taça, a cor é o amarelo verdeal, já puxando para o dourado. No nariz, aromas vegetais com azeitonas, amêndoas torradas e uma mineralidade que remete também a uma brisa marinha. Em boca, apresenta um bom corpo e muito equilíbrio, bastante persistência e um final bem pronunciado, ideal para acompanhar os mais diversos tipos de tapas com azeite, frutos do mar e pratos à base de tomate. Robert Parker já conferiu 90 pontos a este vinho.
El Maestro Sierra Oloroso 15 años !
Em taça, apresenta coloração ambar intenso, límpido. Os aromas complexos misturam desde folhas secas e húmus a marzipã, tâmaras secas, casca de laranja confitada. Em boca, é seco e apresenta untuosidade e muito umami, com sabores tostados e uma boa acidez - o que o torna bastante gastronômico. O prolongado final remete a frutos secos tostados. Ótimo para harmonizar com pratos com cogumelos e/ou shoyu e molhos orientais.
Solera 1847 Cream !!
Outro vinho da González Byass, este é produzido com 80% Palomino (Oloroso) e 20% Pedro Ximénez, que são utilizadas em corte após a fermentação, classificação e fortificação, e em seguida passa ao menos 8 anos em média em botas, no sistema de criaderas e solera. Um Oloroso Dulce de cor âmbar acastanhado, apresenta aromas que remetem a melaço, frutas secas (tâmara, damasco), caramelo, tabaco. Em boca, apresenta ótimo equilíbrio da acidez com o teor de açúcar, e persistência prolongada. Excelente para harmonizar com sobremesas à base de chocolate amargo ou mesmo pratos como o porco agridoce chinês (caramelizado).
Fernando de Castilla Premium Pedro Ximenez Sherry !!
Feito inteiramente com uvas Pedro Ximénez, passa 8 anos em barrica e tem um teor alcoólico de 15%. Em taça, cor castanha intensa (caoba), com densidade (cremosidade) que remete a óleo queimado. No nariz, o aroma de melaço com frutas secas é bastante intenso, com um toque de maçã cozida com canela. Em boca, a untuosidade e o alto teor de açúcar são acompanhados de uma boa acidez, tornando o alto teor alcoólico bastante domado. De final bastante prolongado, harmoniza muito bem com sobremesas com café e chocolate, bem como com tortas de frutas vermelhas, e fica muito adequado com charutos.
El Candado Pedro Ximénez !!
Feito pela Valdespino, o nome remete ao cadeado que um cliente mandou colocar a uma barrica, por ser este o seu favorito - a própria garrafa é ainda hoje adornada com um pequeno cadeado. Um vinho bastante concentrado, seu envelhecimento chega a 10 anos em botas, e possui bastante densidade. Em taça, é de cor caoba (castanho intenso). No nariz, apresenta aromas tostados, como café, cacau, chocolate, bem defumado. Em boca, é bastante adocicado com notas de chocolate e tâmaras, com um final que remete a frutas secas e uma acidez que demonstra bom equilíbrio de Pedro Ximénez jovem e envelhecido, o que o torna levemente mais gastronômico que outros vinhos desse estilo.
Abandone seus preconceitos e fuja do lugar-comum: considere um Jérez como opção tanto para acompanhar uma boa refeição típica espanhola como para beber de aperitivo. As opções são tão variadas quanto interessantes!
Comments